O regresso do Egipto a Nazaré foi contemplado por numerosos artistas e santos. Apresenta-se uma selecção de textos sobre este tema.
A VOZ DO MAGISTÉRIO
Depois da morte de Herodes, quando se dá o retorno da sagrada família a Nazaré, inicia-se o longo período da vida oculta. Aquela que "acreditou no cumprimento das coisas que lhe foram ditas da parte do Senhor" (Lc 1, 45) vive no dia-a-dia o conteúdo dessas palavras. O Filho a quem deu o nome de Jesus está diariamente ao seu lado; assim, no contacto com Ele, usa certamente este nome, o que não devia, aliás, causar estranheza a ninguém, tratando-se de um nome que era usual, desde havia muito tempo, em Israel. Maria sabe, no entanto, que aquele a quem foi posto o nome de Jesus, foi chamado pelo Anjo "Filho do Altíssimo" (cf. Lc 1, 32). Maria sabe que o concebeu e deu à luz "sem ter conhecido homem", por obra do Espírito Santo, com o poder do Altíssimo que sobre ela estendeu a sua sombra (cf. Lc 1, 35), tal como nos tempos de Moisés e dos antepassados a nuvem velava a presença de Deus (cf. Ex 24, 16; 40, 34-35; 1 Rs 8, 10-12). Maria sabe, portanto, que o Filho, por ela dado à luz virginalmente, é precisamente aquele "Santo", "o Filho de Deus" de que lhe havia falado o Anjo.
Durante os anos da vida oculta de Jesus na casa de Nazaré, também a vida de Maria "está escondida com Cristo em Deus" (cf. Col 3, 3) mediante a fé. A fé é, efectivamente, um contacto com o mistério de Deus. Maria está constante e quotidianamente em contacto com o mistério inefável de Deus que se fez homem, mistério que supera tudo aquilo que foi revelado na Antiga Aliança. Desde o momento da Anunciação, a mente da Virgem-Mãe foi introduzida na "novidade" radical de auto-revelação de Deus e tomou consciência do mistério. Ela é a primeira daqueles "pequeninos" dos quais um dia Jesus dirá: "Pai, ... escondeste estas coisas aos sábios e aos sagazes e as revelaste aos pequeninos" (Mt 11, 25). Na verdade, "ninguém conhece o Filho senão o Pai" (Mt 11, 27).
Como poderá então Maria "conhecer o Filho"? Certamente, não como o Pai o conhece; e no entanto, ela é a primeira entre aqueles aos quais o Pai "o quis revelar" (cf. Mt 11, 26-27; 1 Cor 2, 11). Se, porém, desde o momento da Anunciação lhe foi revelado o Filho, que apenas o Pai conhece completamente, como Aquele que o gera no "hoje" eterno (cf. Sl 2, 7), então Maria, a Mãe, está em contacto com a verdade do seu Filho somente na fé e mediante a fé! Portanto, é feliz porque "acreditou"; e acredita cada dia, no meio de todas as provações e contrariedades do período da infância de Jesus e, depois, durante os anos da sua vida oculta em Nazaré, quando ele "lhes era submisso" (Lc 2, 51): submisso a Maria e também a José, porque José, diante dos homens, fazia para ele as vezes de pai; e era por isso que o Filho de Maria era tido pela gente do lugar como "o filho do carpinteiro" (Mt 13, 55).
A Mãe daquele Filho, por conseguinte, lembrando tudo quanto lhe tinha sido dito na Anunciação e nos acontecimentos sucessivos, é portadora em si mesma da "novidade" radical da fé: o início da Nova Aliança. Este é o início do Evangelho, isto é, da boa nova e jubilosa nova. Não é difícil, porém, perceber naquele início um particular aperto do coração, unido a uma espécie de "noite da fé" - para usar as palavras de São João da Cruz - como que um "véu" através do qual é forçoso aproximar-se do Invisível e viver na intimidade com o mistério (cfr. Subida do Monte Carmelo, II, cap. 3, 4-6). Foi deste modo, efectivamente, que Maria, durante muitos anos, permaneceu na intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no seu itinerário de fé, à medida em que Jesus "crescia em sabedoria ... e graça, diante de Deus e dos homens" (Lc 2, 52). Manifestava-se cada vez mais aos olhos dos homens a predilecção que Deus tinha por ele. A primeira entre estas criaturas humanas admitidas à descoberta de Cristo foi Maria que, com Ele e com José, vivia na mesma casa em Nazaré. Carta encíclica Redemptoris Mater, 25-III-1987, n. 17. ***
João Paulo II (século XX).
Carta encíclica Redemptoris Mater, 25-III-1987, n. 17.
«Nazaré é a escola onde começa a entender-se a vida de Jesus, é a escola onde se inicia o conhecimento do Seu Evangelho. Aqui aprendemos a observar, a escutar, a meditar, a penetrar no sentido profundo e misterioso desta simples, humilde e encantadora manifestação do Filho de Deus entre os homens. Aqui se aprende inclusivamente, talvez de uma maneira quase insensível, a imitar essa vida.
Aqui revela-se-nos o método que nos fará descobrir quem é Cristo. Aqui compreendemos a importância que tem o ambiente que rodeou a Sua vida durante a Sua estadia entre nós, e quão necessário é o conhecimento dos lugares, dos tempos, dos costumes, da linguagem, das práticas religiosas, numa palavra, de tudo aquilo de que Jesus se serviu para Se revelar ao mundo. Aqui tudo fala, tudo tem um sentido.
Aqui, nesta escola, compreendemos a necessidade de uma disciplina espiritual se queremos seguir os ensinamentos do Evangelho e ser discípulos de Cristo. Como gostaríamos de ser outra vez crianças e voltar a esta humilde mas sublime escola de Nazaré! Como gostaríamos de voltar a começar, junto de Maria, a nossa iniciação na verdadeira ciência da vida e na mais elevada sabedoria da verdade divina! (...).
A Sua primeira lição é o silêncio. Como desejaríamos que se renovasse e fortalecesse em nós o amor ao silêncio, esse admirável e indispensável hábito do espírito, tão necessário para nós, que estamos atordoados por tanto ruído, tanto tumulto, tantas vozes da nossa ruidosa e extremamente agitada vida moderna. Silêncio de Nazaré, ensina-nos o recolhimento e a interioridade, ensina-nos a estar sempre dispostos a escutar as boas inspirações e a doutrina dos verdadeiros mestres. Ensina-nos a necessidade e o valor de uma conveniente formação, do estudo, da meditação, de uma vida interior intensa, da oração pessoal que só Deus vê.
Oferece-se-nos, além disso, uma lição de vida familiar. Que Nazaré nos ensine o significado da família, a sua comunhão de amor, a sua simples e austera beleza, o seu carácter sagrado e inviolável, o doce e insubstituível que é a sua pedagogia e o fundamental e incomparável que é a sua função no plano social.
Finalmente, aqui aprendemos também a lição do trabalho. Nazaré, a casa do filho do artesão: como desejamos compreender mais neste lugar a austera mas redentora lei do trabalho humano e exaltá-la devidamente, restabelecer a consciência da sua dignidade, de maneira que fosse patente para todos; recordar aqui, sob este tecto, que o trabalho não pode ser um fim em si mesmo e que a sua dignidade e a liberdade para o exercer não provêm tão só dos seus motivos económicos, mas também daqueles outros valores que o encaminham para um fim mais nobre».
Paulo VI (século XX)
Alocução em Nazaré, 5-I-1964
A VOZ DOS PADRES DA IGREJA
«Convém meditar nas palavras que se seguem. Diz: "Crescia em sabedoria e graça" (Lc 2, 40). Crescer em sabedoria e graça não pertence à natureza divina: desde o princípio tinha tudo e nada lhe faltava. Mas também não há que pensar que, segundo a natureza humana, [Jesus] se fortaleceu mais ou foi mais cheio daquele Espírito Santo que habitava n’Ele, pois desde o primeiro momento teve o supremo grau de inabitação da graça. Com efeito, mediante a união das duas naturezas, imediatamente "n’Ele habita, corporalmente, toda a plenitude da divindade" (Col 2, 9), como afirma o santo Apóstolo Paulo.
Assim, as palavras: "Crescia em sabedoria e graça" (Lc 2, 40), ensinam que desde o primeiro momento da inabitação da humanidade na divindade, a plenitude de graça e de sabedoria se manifestava e resplandecia cada vez mais, de acordo com o desenvolvimento e o crescimento corporal; não recebia uma nova graça ou uma sabedoria superabundante, mas a plenitude de graça e de sabedoria manifestava-se por meio das Suas gloriosas acções (...). No entanto, não convinha que a Sua sabedoria se manifestasse fora da idade. E como, segundo a ordem da natureza, se requer esperar pelos doze anos para atingir a plenitude da razão, assim considerou Ele coisa boa atingi-la ao chegar aos doze anos».
São Máximo o Confessor (século VII).
Vida de Maria, n. 60.
«O Menino Jesus, que hoje nasceu para nós, cresce em sabedoria, idade e graça naqueles que O acolhem, mas em diversa medida. Não é idêntico em todos, mas adapta-Se à disponibilidade e à capacidade de cada um e, na medida em que é acolhido, mostra-Se como criança, como adolescente ou como adulto. É como um ramo na videira: não aparece sempre do mesmo modo, mas muda com o decorrer das estações; germina, floresce, converte-se em fruto, chega a fazer-se vinho.
A videira encerra já a promessa no fruto ainda não pronto para o vinho, mas aguarda a estação propícia. No entanto, não se pode dizer que o ramo esteja desprovido de atractivo. Em lugar de deleitar o gosto, deleita o olfacto; e na espera da vindima, fortalece o coração com a esperança. A fé firme e segura da graça que se espera é já gozo para quem aguarda com paciência. Assim sucede com a uva de Chipre: promete o vinho embora ainda não o seja. E com a sua flor (a flor é a esperança) dá garantias da graça futura. Quem adere plenamente mediante a sua vontade à lei do Senhor, e medita nela de dia e de noite, cresce como uma árvore frondosa regada por veias de água viva e produz fruto a seu tempo». ***
SãoGregório de Nisa (século IV).
Homilia II sobre o Cântico dos Cânticos (PG 44, 802-804).
A VOZ DOS SANTOS
«S. Mateus, ao narrar estas cenas no seu Evangelho, põe constantemente em destaque a fidelidade de José, que cumpre sem vacilações os mandatos de Deus, embora por vezes o sentido desses mandatos lhe possa parecer obscuro ou se lhe oculte a sua conexão com o resto dos planos divinos. A fé de José não vacila, a sua obediência é sempre estrita e rápida. Para compreender melhor esta lição que aqui nos dá o Santo Patriarca, é bom que consideremos que a sua fé é activa e que a sua obediência não se parece com a obediência de quem se deixa arrastar pelos acontecimentos. Porque a fé cristã é o que há de mais oposto ao conformismo ou à falta de actividade e de energia interiores. José abandonou-se sem reservas nas mãos de Deus, mas nunca deixou de reflectir sobre os acontecimentos, e assim recebeu do Senhor a inteligência das obras de Deus, que é a verdadeira sabedoria. Deste modo, aprendeu a pouco e pouco que os planos sobrenaturais têm uma coerência divina, que às vezes está em contradição com os planos humanos. Nas diversas circunstâncias da sua vida, o Patriarca não renuncia a pensar, nem se alheia da sua responsabilidade. Pelo contrário: põe toda a sua experiência humana ao serviço da fé. Quando volta do Egipto, ouvindo que Arquelau reinava na Judeia em vez de seu pai Herodes, temeu ir para lá. Aprendeu a mover-se dentro dos planos divinos e, como confirmação de que Deus quer o que ele pressentia, recebe a indicação de se retirar para a Galileia. Assim foi a fé de S. José: plena, confiante, íntegra, manifestando-se numa entrega real à vontade de Deus, numa obediência inteligente. E, com a Fé, a Caridade, o Amor. A sua fé funde-se com o amor: com o amor de Deus que estava a cumprir as promessas feitas a Abraão, a Jacob, a Moisés; com o carinho de esposo para com Maria e com o carinho de pai para com Jesus. Fé e amor na esperança da grande missão que Deus, servindo-se também dele – um carpinteiro da Galileia – estava a começar no mundo: a redenção dos homens.»
São Josemaría Escrivá de Balaguer (séc. XX).
Cristo que passa, n. 42.
A VOZ DOS POETAS
O infinito Menino vai crescendo,
e com garbo e graça sobrehumana
dá passinhos pela mão asiendo
à que pisa a imortal Diana;
dela para o justo José parte correndo,
e dos braços com que o universo aplana
asas fazendo, voa para o doce ninho
do terno coração do seu querido...
Pendendo alegre do amado colo,
e achando-Se seguro entre seus braços,
o rosto grave junta ao Seu belo,
premiando seus dulcíssimos abraços:
Talvez deixe os braços de Sua mãe,
e cheio de amoroso regozijo
por ver que tal favor a José agrade,
balbuciando com ele, pai! lhe disse.
Ele com afecto e com amor de pai
filho! lhe chama, sendo de Deus Filho;
encosta o seu rosto ao de escarlate e neve,
e das suas rosas o alento bebe.
Já o Menino Deus os alvos peitos deixa
ricos do seu alimento soberano,
e nos pés de ouro já com maior força,
e anda sem que ninguém Lhe dê a mão;
chora se vê que seu José se afasta,
e vendo-o voltar se alegra ufano;
ásele e diz cheio de alegria:
"Pai, dê-nos o pão de cada dia"...
José de Valdivielso (siglos XVI-XVII)
Vida, excelencias y muerte del glorioso Patriarca y Esposo de Nuestra Señora San José, canto XIX.